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O sítio Nossa Senhora Aparecida ficou por muito tempo escondido dentro da garganta. 

Toda aquela região permaneceu coberta por samambaias selvagens durante décadas. Lagartos escamados dominavam a mata e impediam o acesso à casa localizada em terreno plano no sobe e desce da serra. O som que ecoava dos morros denunciava as centenas de tucanos predadores, que sobrevoavam a área caçando ovadas e filhotes de outras espécies. Somente depois que a Sandra chegou de viagem do outro lado do mundo e assinou o trato com Srº Chico que o lugar passou a ser acessível. O acordo de boca está descrito em três cláusulas.

No primeiro mês de trabalho duro, retiraram parte das samambaias selvagens da estrada para desobstruir o caminho de terra e cercaram a passagem com troncos das próprias árvores abatidas pelas tempestades, impedindo a circulação dos lagartos. 

No segundo mês de trabalho destemido, expulsaram as serpentes e mataram os ratos. Segundo os moradores mais chegados à dona do sítio, eram tantas, grandes e tão gordas as ratazanas que suas carcaças foram fincadas e acumuladas em um grande mastro de bandeira no centro do terreiro, objeto que restou das histórias dos coronéis do interior.

No terceiro e último mês de trabalho desassombrado, para então solidificar o audacioso trato, todos se reuniram para a limpeza da casa. 

Sandra concordou em também trazer para o sítio o filho do Srº Chico, Júnior, e sua nora, Meire. Foi a Meire quem abriu a porta da casa no dia da faxina e viu enrolada entre a fresta do piso de madeira e o pé da cama do século XIX uma enorme cascavel. Ao ouvir o choro, Srº Chico entrou na sala correndo, segurando crucifixo e facão, e degolou o bicho sem ressentimento. 

Após o episódio, Meire largou suas malas de roupa na velha sacada da porta principal da casa. Calçava chinelo de dedo quando caminhou por oito quilômetros em direção ao Rio de Janeiro. Depois de secar o pranto, voltou pelo mesmo caminho e com os pés vermelhos de pó adentrou a casa novamente. Naquele momento, segurando balde, sabão e vassoura, esfregou o chão cuidadosamente. Aos poucos ela tornou-se outra, sorriu e quando se certificou de que na casa não havia alma penada em nenhum dos cômodos, chamou de sua.

No final daquela tarde, todos sentaram em torno da mesa, viram os grãos de café verde ficarem pretos dentro do torrador manual e sentiram seu cheiro enquanto o sol descia atrás da serra. Restou uma única fresta de luz atravessando o vidro retangular da cozinha, iluminando somente metade de seus rostos. As xícaras, às vezes, encobriam suas bocas que falavam sobre Bageira.

 

Café
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